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Envelhecer é uma arte
Envelhecer é uma arte

Cidades amigas de todas as idades

Como repensar os espaços urbanos para garantir qualidade de vida, autonomia e pertencimento em todas as fases da vida — do começo ao envelhecer

Juliana Gai

10/06/2025 13h11

beautiful mature woman spending time around city

Foto: Freepik

Você já reparou que as cidades parecem sempre feitas para os mesmos? Jovens, ágeis, apressados. Ruas estreitas, escadas por todos os lados, ônibus lotados, calçadas esburacadas, sem bancos para sentar ou sombra para esperar.

Vivemos um tempo que cultua o corpo ideal, quase como aquele do desenho do homem vitruviano, de Leonardo da Vinci: braços e pernas proporcionais, postura impecável, músculos definidos, juventude evidente. Um padrão inalcançável para a maioria de nós.

A sociedade sempre teve uma relação distorcida com a ideia de beleza. Muita gente vive obcecada com o corpo do presente, investindo em cápsulas de vitaminas, suplementos anti-idade, tratamentos estéticos e compras da moda. Não estou criticando o autocuidado — eu mesma faço botox a cada quatro ou seis meses e já recorri aos fios faciais. Mas cuidar-se é diferente de viver refém de um ideal estético inalcançável. Ser escravo do que os outros esperam do nosso corpo não é saudável.

Vamos olhar a realidade de frente? A maioria de nós não se parece em nada com o homem vitruviano. A rotina já é um desafio: mal conseguimos ir à academia três vezes por semana. Cuidamos de filhos, de pais idosos, lidamos com doenças crônicas, tomamos remédios com efeitos colaterais e, claro, pagamos boletos. Trabalhar é essencial.

Quantos aqui se veem como modelos de capa de revista? Eu certamente não. Mas tudo bem. Tenho um trabalho que me realiza, uma filha linda, amigos que amo e parceiros de projetos que me inspiram. Mesmo com os sintomas do climatério, mesmo lidando com a correria diária, o trânsito que me esgota, o corpo que já não responde como antes. Sim, olho fotos antigas e vejo mais brilho no olhar, menos rugas, mais cabelo, uma cinturinha invejável. Mas sigo em frente — com alegria.

O que me incomoda é a falta de estímulo à aceitação do tempo. Falamos pouco sobre as diferenças reais entre os corpos. Pouco se pensa em pessoas com deficiência, em gestantes, cadeirantes, ou mesmo em crianças ao planejar espaços públicos. E idosos, então? Raramente são lembrados.

A pessoa idosa é quase invisível. Só vira pauta quando já está doente, quando os filhos buscam ajuda do governo para comprar fraldas ou conseguir oxigênio. É como se, depois de certa idade, ela deixasse de merecer circular com segurança ou viver com autonomia.

Precisamos urgentemente aceitar o tempo. Envelhecer é natural. Precisar de óculos aos 40? Normal. Cansar mais rápido? Também. O corpo muda, mas isso não deveria limitar nossa liberdade. Precisamos educar as crianças de hoje para entenderem que serão os idosos de amanhã — e só assim poderemos abrir espaço para todos nas cidades, nas empresas, na vida.

A proposta da Cidade Amiga do Idoso, lançada pela Organização Mundial da Saúde, é um convite claro: planejar cidades onde todos possam viver com conforto, segurança e autonomia — inclusive os mais velhos. E isso não é só um discurso bonito. É urgente. A população brasileira está envelhecendo rapidamente. E envelhecer com dignidade não pode ser privilégio.

O melhor? Quando planejamos uma cidade boa para quem tem mais de 60, ela fica boa para todos. Para crianças, gestantes, pessoas com deficiência, mães com carrinhos, para quem está cansado e só quer respirar sob uma árvore antes de seguir. Cidades íveis, com transporte público de verdade, moradia adequada e áreas verdes não são só políticas sociais — são soluções ambientais. São inovação urbana. São a base da sustentabilidade.

E mais: não adianta só plantar árvores — precisamos pensar em sustentabilidade econômica. O país já sinalizou que não há como sustentar aposentadorias precoces. É preciso estimular a capacitação e a permanência das pessoas no mercado de trabalho o máximo possível. As empresas privadas — especialmente as que mais lucram — precisam entrar nesse movimento. Não dá para deixar tudo nas costas do setor público.

Uma cidade arborizada combate diretamente as ilhas de calor, que aumentam a temperatura em até 7°C. Mais sombra nas calçadas reduz doenças respiratórias, cardiovasculares, desidratação e infecções urinárias — sobretudo entre idosos. E ainda melhora nosso humor e disposição para sair de casa, circular, viver.

Cuidar das calçadas também estimula a caminhada. E quando as ruas são seguras, bem iluminadas e agradáveis, mais gente deixa o carro na garagem. Isso reduz o trânsito, diminui a poluição e fortalece o transporte público. O ciclo começa com o básico: árvore, banco, rampa e calçada boa. E a consciência de que, no futuro, todos vamos querer desacelerar.

Existe um campo ainda pouco explorado que pode mudar tudo: a geroarquitetura. Ela une arquitetura, urbanismo e gerontologia para criar espaços que acompanham o envelhecimento. Desde a casa até a cidade, tudo pode ser planejado para prevenir quedas, preservar a autonomia e manter o idoso ativo. Iluminação adequada, pisos seguros, banheiros íveis — pequenos detalhes que salvam vidas e fortalecem a autoestima.

Outro conceito essencial é o aging in place, ou “envelhecer no lugar”. A ideia é simples: poder continuar vivendo onde se construiu uma vida. Para isso, é preciso moradias adaptadas, transporte eficiente, comércio e serviços por perto. Quando isso acontece, diminuem as internações, evitam-se instituições precoces, cresce o senso de pertencimento.

Caso contrário, o resultado é previsível: mais pessoas doentes, isoladas, dependentes — e um sistema público exausto. Já estamos vendo isso no SUS, nas filas da assistência social, nas famílias sobrecarregadas.

Cuidar dos 60+ não é custo. É investimento. Em saúde, em economia, em sustentabilidade. Uma cidade em que o idoso vai sozinho à farmácia, frequenta oficinas, mora perto de onde precisa, gasta menos com ambulâncias e internações. E ganha mais em qualidade de vida.

E há um aspecto ainda pouco debatido, mas vital: cidades inclusivas promovem trocas entre gerações. Quando idosos e crianças compartilham espaços, quando jovens aprendem com os mais velhos, quando mães e avós convivem em equipamentos públicos, criamos uma cultura de pertencimento. E pertencimento é um dos maiores antídotos contra o adoecimento emocional.

A boa notícia? As soluções existem. E não precisam ser caras. Urbanismo tático, bancos nas calçadas, moradias adaptáveis, aplicativos íveis. Não é preciso reinventar a roda — só colocá-la para girar.

Fica o convite: se você trabalha com planejamento urbano, saúde, assistência, arquitetura, meio ambiente ou mobilidade, olhe para a cidade com os olhos de quem já viveu muito. Talvez, assim, você encontre soluções mais humanas também para os mais jovens.

Porque, no fim das contas, uma cidade boa para os idosos é uma cidade boa para todos. E envelhecer bem não deveria depender da sorte — mas de um projeto coletivo.

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