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Ciência da Psicologia
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A psicologia e a ilusão da democracia

Entre ideais e estruturas de poder, uma análise da democracia como construção simbólica que molda comportamentos, regula liberdades e esconde privilégios sob o véu da participação popular

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

04/06/2025 12h29

hand gesture expressing different feelings

Foto: Freepik

Para a coluna desta semana, pedi apoio a Rodrigo López dos Santos, pessoa pela qual tenho profundo respeito, iração e, claro, gratidão pelos incontáveis áudios reflexivos no grupo de WhatsApp que compartilho com outros notáveis como ele.

Segundo Rodrigo, democracia — do grego demos (povo) e kratos (poder) — talvez seja um dos conceitos mais mal utilizados em nossos tempos. A ela nos referimos como uma virtude inabalável, uma deidade inquestionável, uma reverência absoluta. Vamos tentar, neste pequeno artigo, entender como esse conceito começou e no que se transformou.

Com o surgimento das pólis gregas — mesmo já havendo outras concentrações humanas na época — surgiu também a necessidade de controle e istração dessa população. A solução encontrada pelos gregos foi criar um governo no qual a representatividade dos homens comuns fosse considerada, o que marcou uma diferença em relação às autocracias reinantes.

Naquele período, a maioria das cidades e reinos era governada por famílias que se destacavam, na maior parte das vezes, pelo poder militar, impondo seu domínio pela força. As cidades do Oriente Médio — abrangendo partes da Eurásia e da África, então conhecidas como berço das civilizações — viviam sob regimes autoritários, governados por reis que ascendiam sob a proteção das armas e de seus “deuses”. Era a lei do mais forte, e essa forma de organização social, a meu ver, ainda persiste até os dias de hoje.

Por volta de 510 a.E.C., Clístenes, um aristocrata grego, liderou uma rebelião e derrubou o regime vigente, promovendo reformas que mais tarde seriam aprimoradas por Péricles e culminariam no que chamamos de democracia.

Dentre as principais inovações trazidas por esse sistema estavam, grosso modo, a concessão de direitos políticos aos cidadãos atenienses, a criação de assembleias para discutir os assuntos da cidade, e a formação de estruturas equivalentes aos poderes Legislativo e Judiciário.

Esse modelo foi debatido exaustivamente por filósofos como Aristóteles, Platão, Rousseau, Montesquieu, Heráclito, entre muitos outros. Ao longo dos séculos, suas ideias contribuíram para a evolução e adaptação da democracia em diferentes sociedades. Hoje, temos duas formas de governo predominantes: a república e a monarquia. A democracia, por sua vez, tornou-se um sistema de organização política que pode ou não estar presente nessas formas de governo.

Segundo Churchill — se não me engano — a democracia é “o pior regime que existe, à exceção de todos os outros”. E isso não deixa de ser verdade. Minha crítica a esse regime diz respeito à maneira como foi endeusado pelas nações que o adotaram — justamente as que mais se desenvolveram e dominaram o mundo. Mais uma vez, a história é contada pelos vencedores.

Retornando às origens: quem podia participar da democracia? Apenas homens livres, alfabetizados e, mais importante, com posses — ou seja, a elite. Não estou aqui para julgar ou defender um ponto de vista, mas para alertar sobre como somos levados a crer que a democracia é perfeita e que “todo o poder emana do povo”, como diz a nossa Constituição. O “povo”, nesse caso, sempre foi cuidadosamente selecionado de acordo com a vontade dos dominantes.

A democracia grega até permitia que pessoas “comuns”, com pensamentos distintos, ocuem cargos de decisão. Mas o que pouco se diz é que, por trás dessa liberdade aparente, havia um conselho de homens poderosos e, sobretudo, uma força militar bem preparada e financiada para intervir caso a democracia fosse “exercida demais”.

Rodrigo também observa que nenhum dos grandes filósofos realmente apreciava a democracia — especialmente porque o que foi divulgado como “poder do povo” era, na prática, bem distante disso. A ideia é bonita, mas, aqui no Brasil, quanto poder o povo realmente tem?

A verdade é que afirmar que vivemos em uma democracia não descentraliza o poder em nenhum nível. A Coreia do Norte, por exemplo, autointitula-se “República Popular Democrática da Coreia” (RPDC).

Michel Foucault, conhecido pensador de esquerda, dizia que as pessoas eram mais livres no reinado de Luís XIV do que hoje em dia — simplesmente porque o Estado era menor e seus mecanismos de controle, mais limitados. Alexis de Tocqueville também notou que o aparato de controle cresceu exponencialmente com o fim do absolutismo.

Ou seja, a ilusão de liberdade não é liberdade de fato.

Ao resgatarmos as origens históricas e filosóficas da democracia, percebemos que o ideal do “governo do povo” está mais no plano simbólico do que na prática concreta. A Psicologia, enquanto ciência que estuda o comportamento humano em seus contextos sociais, lança luz sobre como os discursos sobre liberdade, cidadania e participação política são internalizados, normatizados e reproduzidos — muitas vezes, sem reflexão crítica.

Hoje, a democracia se consolidou como um valor absoluto — quase um “significante vazio” sobre o qual diferentes interesses se projetam. No entanto, ao contrário do que se prega, o poder raramente emana verdadeiramente do povo. Mesmo nas chamadas democracias modernas, permanecem mecanismos de controle social, manipulação simbólica e exclusão subjetiva que limitam, na prática, o exercício da liberdade.

A Psicologia Social Crítica, ao lado de pensadores como Foucault e Bourdieu, nos mostra que os dispositivos de poder evoluíram não apenas pela força, mas pelo consentimento — um consentimento fabricado por discursos midiáticos, escolares, jurídicos e até terapêuticos. A ilusão de liberdade é sustentada por práticas sutis de vigilância e normatização que fazem o indivíduo se sentir livre, mesmo que esteja aderindo a modelos padronizados e alienantes de comportamento.

Na prática, essa “democracia psicológica” — onde todos parecem poder falar, escolher e participar — esconde o fato de que grande parte das decisões é tomada em esferas inalcançáveis para a maioria. O sujeito democrático é treinado desde cedo a desejar certos estilos de vida, a adotar crenças e a temer outras formas de organização social que desafiem o status quo.

É função da Psicologia — sobretudo em sua interface com a Filosofia e as Ciências Sociais — provocar o pensamento. Desnaturalizar conceitos, questionar discursos e abrir espaço para formas mais autênticas de expressão e participação cidadã. Se quisermos que a democracia ultrae o campo da ilusão e se aproxime de uma vivência ética e horizontal, será preciso, antes, encarar com coragem os mecanismos — internos e externos — que ainda a tornam um privilégio para poucos e um simulacro para muitos.

E, diante da realidade do nosso país, ao pensarmos na democracia tão exaltada por nossos governantes, talvez valha recordar o alerta de Platão: após a democracia, o próximo o pode ser a tirania…

Fica a dica.
Até a próxima.

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