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Ciência da Psicologia
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A Lei de Bastiat e a crise do Estado de Direito no Brasil contemporâneo

Uma reflexão sobre como o desvirtuamento da lei e o ativismo institucional afetam não só a democracia brasileira, mas também a saúde mental da população

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

11/06/2025 17h21

people meeting community center

Foto: Freepik

Publicado em 1850, A Lei, de Frédéric Bastiat, tornou-se um marco da filosofia política liberal. A obra apresenta uma defesa vigorosa da liberdade individual e da limitação do poder estatal, ressaltando o papel da lei como instrumento de proteção aos direitos naturais: vida, liberdade e propriedade. Bastiat alerta que, quando a lei se transforma em meio de espoliação legal — ou seja, quando o Estado se apropria dos bens dos indivíduos para beneficiar interesses particulares — ela perde sua justiça e, com ela, sua legitimidade.

A proposta desta coluna é fazer uma análise crítica da conjuntura política e institucional brasileira à luz dos princípios apresentados por Bastiat. Embora o Brasil se configure formalmente como um Estado Democrático de Direito, observa-se um desvirtuamento progressivo da função da lei e um ativismo crescente de instituições como o Supremo Tribunal Federal, comprometendo a separação dos poderes e os alicerces da democracia liberal.

Para Bastiat, a lei justa é a codificação da justiça natural. Ela não cria direitos — apenas os reconhece e protege. Sua função é assegurar que cada indivíduo possa exercer sua liberdade sem interferências indevidas, seja de outros cidadãos ou do próprio Estado. Quando o Estado ultraa sua função protetiva e a a legislar ou decidir em prol de grupos específicos ou para impor valores coletivos por meio da coerção, incorre na chamada “espoliação legal”.

Esse conceito se concretiza, por exemplo, quando o Estado tributa excessivamente com fins de redistribuição política da renda ou intervém na iniciativa privada em nome de uma justiça social artificial. Tais práticas desequilibram o jogo democrático e transformam a lei em instrumento de dominação.

No Brasil atual, a politização das instituições e a hipertrofia estatal são cada vez mais evidentes. A espoliação legal se manifesta em políticas públicas que favorecem setores específicos em detrimento da maioria, como renúncias fiscais seletivas, subsídios a grupos de interesse e interferências econômicas que distorcem o livre mercado. Soma-se a isso uma carga tributária elevada e um sistema fiscal complexo, que configuram apropriação coercitiva da renda dos cidadãos — o que Bastiat denunciaria como violação à essência da lei.

A desigualdade na aplicação das normas, a ineficiência do Estado e a complacência com a corrupção institucionalizada alimentam a percepção de que o poder público atua mais em benefício de elites burocráticas do que da cidadania.

O Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário, tem assumido protagonismo cada vez maior no cenário político. Embora sua missão seja zelar pela Constituição e pelos direitos fundamentais, muitas de suas decisões recentes têm sido criticadas por interpretações amplas e subjetivas, por vezes distantes do texto constitucional — características do ativismo judicial.

Segundo Bastiat, o ativismo exagerado compromete o princípio da legalidade, pois converte a lei em expressão de vontade, e não de justiça. Casos como a censura prévia à imprensa, a criminalização de opiniões nas redes sociais e o encarceramento de opositores antes do trânsito em julgado ilustram o uso extensivo da lei como instrumento de repressão — exatamente o tipo de desvio que Bastiat alertava ser corrosivo à ordem social e à liberdade individual.

O alerta de Bastiat é atual e necessário: quando os agentes públicos legislam, julgam ou executam movidos por interesses ou ideologias, o Estado de Direito cede lugar à arbitrariedade. A democracia, assim, deixa de ser regida por leis e a a ser governada por homens.

No contexto brasileiro, o enfraquecimento da separação dos poderes, a perseguição a vozes dissonantes e o uso estratégico de normas em nome de “valores superiores” configuram riscos concretos à liberdade. A ideologia, quando instrumentaliza a lei, converte o Estado em mecanismo de espoliação e repressão — exatamente o cenário que Bastiat combatia.

Ainda que A Lei não tenha sido escrita sob fundamentos psicológicos, sua crítica à expansão ilegítima do poder encontra ecos na Psicologia, especialmente nas áreas da Psicologia Social e da Psicologia da Saúde. Liberdade, justiça e previsibilidade são necessidades humanas básicas. Em ambientes marcados por instabilidade institucional, decisões arbitrárias e incertezas políticas, como o que vivemos, os impactos sobre a saúde mental são evidentes.

A insegurança jurídica contribui para sentimentos de impotência, ansiedade e desconfiança, gerando o que David Le Breton (2007) denomina “angústia social difusa” — um fenômeno que conecta o colapso dos vínculos sociais ao sofrimento psíquico.

Sob a ótica da Psicologia Social, as instituições não apenas regulam a vida coletiva, mas também moldam a subjetividade. A confiança em instituições como o Judiciário, o Parlamento e a mídia é essencial para a coesão social. Quando essa confiança se esvai, instala-se a descrença, a polarização afetiva e o rompimento de vínculos simbólicos fundamentais para a convivência democrática.

O ativismo judicial descontrolado, a censura a opiniões divergentes e a instabilidade normativa, em vez de proteger, desorganizam simbolicamente os indivíduos e enfraquecem as referências sociais. Isso contribui para quadros de estresse crônico, depressão e ideação persecutória — fenômenos observáveis em períodos de crise político-institucional.

A espoliação legal, no sentido bastiatiano, pode também ser interpretada pela ótica da psicopolítica, como propõe Byung-Chul Han (2015). O autor afirma que o neoliberalismo contemporâneo exerce dominação não pela repressão direta, mas pela internalização da culpa e da autoexploração. A espoliação, seja por vias fiscais, judiciais ou ideológicas, fragiliza o cidadão, que a a se responsabilizar individualmente por fracassos sistêmicos.

Nesse contexto, o Estado, que deveria proteger, é vivenciado como uma ameaça. Essa percepção alimenta transtornos de ansiedade, distúrbios do sono, burnout político e apatia social — intensificados quando a liberdade de expressão e os mecanismos legítimos de resistência são suprimidos.

A Lei, de Bastiat, permanece extraordinariamente atual. Sua denúncia contra a espoliação legal e o abuso do poder estatal é uma lente poderosa para interpretar os desvios institucionais no Brasil contemporâneo. A atuação de instituições como o STF precisa ser constantemente examinada sob os princípios da legalidade, da liberdade e dos limites do poder.

Unir a perspectiva da Psicologia — especialmente a Psicologia Social — à análise política permite compreender que as consequências desses abusos não se limitam ao campo jurídico ou econômico. Elas afetam profundamente o bem-estar coletivo e a saúde mental dos indivíduos.

Defender o Estado de Direito, a liberdade e os limites do poder estatal é, portanto, também uma urgência psicossocial. A Psicologia, enquanto ciência comprometida com a saúde mental e com a cidadania, tem o dever de se posicionar diante de práticas que ameaçam a dignidade e o equilíbrio subjetivo das pessoas.

Retomar os fundamentos da legalidade, da liberdade e da justiça é essencial para impedir que a democracia brasileira se transforme numa tirania revestida de legalidade. A lição de Bastiat é clara: quando a lei serve à ideologia e ao poder, ela perde sua essência e ameaça os próprios pilares da civilização.

Até a próxima.

BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012. 

BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes,  2007. 

COELHO, Ives Gandra da Silva Martins. Estado de Direito e Ativismo Judicial. Revista  Brasileira de Direito Constitucional, v. 18, n. 2, 2021. 

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo  Horizonte: Autêntica, 2015. 

LE HAYEK, Friedrich A. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Liberal, 2010. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais. São  Paulo: Saraiva, 2018. 

SATO, Leny Magalhães. Psicologia Social Crítica: história e compromisso social.  Petrópolis: Vozes, 2004.

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